quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Todos nós descendemos de uma ancestral em comum?

Introdução a Todos nós descendemos de uma ancestral em comum?

Em 1987, um grupo de geneticistas publicou um estudo surpreendente no jornal Nature. Os pesquisadores examinaram o DNA mitocondrial (mtDNA) de 147 pessoas de todos os principais grupos raciais que existem atualmente. Esses pesquisadores descobriram que a linhagem de todas as pessoas vivas atualmente se inicia em um dos dois galhos da árvore genealógica da humanidade. Um desses galhos consiste apenas na linhagem africana e o outro contém todos os outros grupos, inclusive algumas linhagens africanas.
Ilustração original da HSW
O mais impressionante é que os geneticistas concluíram que todas as pessoas na Terra podem ter uma linhagem com uma única ancestral em comum, que viveu há cerca de 200 mil anos. Como um galho da linhagem humana é de origem africana e o outro também contém linhagem africana, os autores do estudo concluíram que essa mulher viveu na África. Os cientistas chamaram essa ancestral em comum de Eva Mitocondrial.
Os pesquisadores tiveram a idéia de realizar esse projeto com base em uma descoberta que outro geneticista fez em 1980. O Dr. Wesley Brown percebeu que, quando se compara o mtDNA de dois seres humanos, as amostras são muito mais parecidas do que quando o mtDNA de dois outros primatas é comparado (como o de dois chimpanzés, por exemplo). Brown descobriu que o mtDNA de dois seres humanos tem apenas cerca da metade das diferenças que o mtDNA de dois outros primatas apresenta dentro da mesma espécie. [fonte: Cann (em inglês)]. Isso quer dizer que os humanos têm uma ancestral em comum muito mais recente do que os outros primatas, uma idéia tentadora o suficiente para dar início à investigação do Nature.
A autora principal do estudo, Rebecca Cann, definiu o uso do nome Eva, escolhido por ela e por seus colegas, como uma brincadeira com o nome e ressaltou que o estudo não indicava que a Eva Mitocondrial era a primeira, ou talvez a única, mulher na Terra durante o tempo em que viveu [fonte:Cann (em inglês)]. Em vez disso, ela é a pessoa no topo da genealogia (em inglês) de todas as pessoas. Em outras palavras, existiram muitas mulheres antes dela e muitas vieram depois, mas a vida dela foi o ponto de partida para todos os galhos modernos da árvore genealógica da humanidade.
Quando os pesquisadores do estudo de 1987 examinaram as amostras coletadas de 147 pessoas e fetos diferentes, encontraram 133 seqüências distintas de mtDNA. Constatou-se que algumas dessas pessoas tinham uma ligação recente. Depois de comparar o número de diferenças entre as amostras de mtDNA entre raças, eles descobriram que os africanos têm o mtDNA mais diversificado (ou seja, com o maior número de diferenças) se comparado com o de qualquer outro grupo racial. Isso poderia indicar que o mtDNA encontrado em africanos é o mais antigo: como sofreu o maior número de mutações, que são processos demorados, deve ser a linhagem mais antiga entre as que existem hoje.
Os dois galhos distintos que eles descobriram continham o mtDNA encontrado nas cinco principais populações do planeta: da África, da Ásia, da Europa, da Austrália e da Nova Guiné. Os pesquisadores descobriram que no galho que não era exclusivamente africano, as populações raciais geralmente tinham mais de uma linhagem. Por exemplo, o parente mais próximo de uma linhagem de Nova Guiné é encontrado em uma linhagem presente na Ásia, não em Nova Guiné. No entanto, todas as linhagens e os dois galhos podem ter iniciado em um conceito teórico: a Eva Mitocondrial.
Então como a Eva acabou sendo a ancestral em comum mais recente da humanidade? Vamos aprender sobre isso neste artigo, além de ver alguns argumentos contrários à teoria da Eva Mitocondrial. Mas primeiro, o que são mitocôndrias e por que os cientistas usaram o mtDNA para pesquisar o início das linhagens?

Um pouco sobre a mitocôndria

Os biólogos sabem da existência da mitocôndria desde o século 19. Mas apenas no fim da década de 70 ficou evidente a importância de usar o DNAencontrado dentro da mitocôndria para examinar a história antiga da humanidade. O DNA mitocondrial difere, de algumas maneiras importantes, do DNA nuclear. A variedade do DNA localizado dentro do núcleo de cada uma de suas células determina a cor dos seus olhos, suas características raciais, sua tendência a desenvolver determinadas doenças, entre outras características, enquanto o mtDNA, por outro lado, contém códigos para a produção de proteínas e a realização de outros processos pelos quais a mitocôndria é responsável.
Os genes que você possui na forma de DNA nuclear são o resultado da união entre o DNA de sua mãe e de seu pai. Essa união é chamada derecombinação. No entanto, o mtDNA é derivado quase que exclusivamente de sua mãe. Isso acontece porque o óvulo de uma fêmea humana contém vários mtDNAs, enquanto os espermatozóides masculinos contêm apenas um pouco de mitocôndria. Uma das funções de uma única mitocôndria é gerar energia para a célula em que ela se encontra, e os espermatozóides usam algumas mitocôndrias na cauda para estimular a corrida em direção ao óvulo e realizar a fertilização (em inglês). Essas mitocôndrias são destruídas depois que o espermatozóide fertiliza o óvulo e, como conseqüência, qualquer mtDNA que poderia ser transmitido pelo lado do pai é perdido.
Sperm fetilizing egg.
iStockphoto
Ao passo que os óvulos femininos possuem várias mitocôndrias, os espermatozóides masculinos contêm apenas algumas, que são perdidas depois da fertilização

Isso significa que o mtDNA é matrilinear, ou seja, apenas o lado da mãe sobrevive de uma geração para a outra. Uma mãe que tem apenas filhos homens terá a sua linhagem de mtDNA perdida. Até agora, a análise de mtDNA apresentou apenas casos raros e incomuns em que o mtDNA paterno sobrevive e é transmitido para a criança.
A mitocôndria também é importante para os evolucionistas porque cópias exatas do seu mtDNA podem ser encontradas em células por todo o seu corpo. E dentro de cada célula também podem existir milhares de cópias do mtDNA. Por outro lado, o DNA nuclear em uma célula geralmente contém apenas duas cópias. Também é mais fácil extrair o mtDNA do que o DNA nuclear, já que ele é encontrado fora do núcleo celular, que é frágil e se decompõe mais rápido.
O resultado de tudo isso é que o seu mtDNA é o mesmo que o de sua mãe, já que não existe recombinação para formar uma terceira versão, diferente do DNA de sua mãe e de seu pai, mas sim uma combinação dos dois. Isso torna o mtDNA muito mais fácil de rastrear a partir de um ponto de vista antropológico.
Os seres humanos existem há muito tempo. Durante as centenas de milhares de anos em que estamos vivendo no planeta, os nossos números cresceram. Então como apenas há cerca de 200 mil anos uma única mulher se tornou a bisavó de todos nós? A história humana não deveria ser mais antiga do que isso?
Leia a próxima seção para descobrir sobre como a humanidade pode ter chegado perto da extinção, preparando o terreno para a Eva Mitocondrial deixar sua herança duradoura.

Tudo sobre a Eva Mitocondrial

Cann e os outros pesquisadores estimaram que a Eva Mitocondrial tenha vivido há cerca de 200 mil anos. Contando com a margem de erro deles, ela teria vivido entre 500 mil e 50 mil anos atrás. Supondo que a Eva tenha vivido em uma época em que existiam outras mulheres vivas, como todas as pessoas que vivem hoje são descendentes apenas dela?

Existem algumas explicações para o fato de que apenas o mtDNA de Eva tenha conseguido sobreviver e, provavelmente, uma combinação de fatores convergentes seja responsável.

A possibilidade mais provável é que um efeito gargalo aconteceu na humanidade enquanto Eva estava viva. Essa é uma situação em que a grande maioria dos membros de uma espécie morre de maneira repentina, deixando a espécie à beira da extinção. Essa diminuição repentina do número de pessoas não acontece devido a alguma falha de adaptação. É mais provável que seja o resultado de algum tipo de catástrofe, como por exemplo, o resultado de um cometa colidindo com a Terra. Depois de um acontecimento assim, restam apenas alguns membros para repovoar o grupo e continuar a evoluir. Suspeita-se que o efeito gargalo tenha acontecido em momentos distintos da história da humanidade, então não é uma idéia irreal que um acontecimento como esse possa ter ocorrido durante a vida de Eva.
Um relatório lançado em 1998 concluiu que há cerca de 70 mil anos, a humanidade foi reduzida para apenas 15 mil pessoas em todo o planeta. [fonte: Whitehouse (em inglês)]. Com poucas pessoas espalhadas pelo planeta, a humanidade realmente estava à beira da extinção. O acontecimento que quase causou a extinção de nossa espécie foi a erupção do Monte Toba, em Sumatra. Essa erupção vulcânica foi tão imensa que diminuiu as temperaturas globais, aniquilou os animais e as plantas que alimentavam os humanos e estimulou a era do gelo mais fria que o planeta já viu, que durou mil anos.
Sumatran volcano
Jewel Samad/AFP/Getty Images
Acredita-se que um vulcão em Sumatra tenha causado um efeito gargalo na humanidade depois que entrou em erupção há 70 mil anos

A teoria da Eva Mitocondrial apresenta situações parecidas. Se a populaçãohumana foi reduzida de maneira drástica e não existiam muitas mulheres para ter filhos, o terreno estava pronto para que uma “Mãe Sortuda”, de acordo com Cann, surgisse como a ancestral em comum mais recente. É possível que depois de algumas gerações, o mtDNA de outras mulheres tenha desaparecido. Se uma mulher tem apenas filhos homens, o mtDNA dela não será transmitido, já que as crianças não recebem o mtDNA dos pais. Isso significa que embora os filhos da mulher tenham o mtDNA dela, seus netos não terão, e a sua linhagem será perdida.
É possível que essa tenha sido a causa para a Eva surgir como a única “Mãe Sortuda” que em essência deu à luz todos nós.
Está um pouco difícil de entender? Não se preocupe. Leia a próxima seção para ver o que o mtDNA teoricamente é capaz de fazer. Isso irá esclarecer um pouco as coisas.

Um exemplo da pesquisa de mtDNA

Embora falar sobre mutações genéticas e seqüências de DNA faça isso parecer complexo, em essência, a análise de mtDNA é feita com base em uma idéia aparentemente simples: as pessoas cujos ancestrais já foram parentes próximos devem ter um mtDNA quase idêntico. O mtDNA pode sofrer mutações, mas elas demoram para acontecer. De maneira lógica, quanto menos mutações, menos tempo passou desde que dois ancestrais das famílias se afastaram. As pessoas que têm apenas algumas diferenças em suas seqüências de mtDNA seriam parentes mais próximos do que aquelas cujas seqüências apresentam muitas diferenças.
Tente imaginar as coisas dessa maneira: digamos que a sua tataravó Mildred por parte de mãe tivesse uma irmã, chamada Tillie. As duas têm o mesmo mtDNA, que receberam da mãe delas. Mas imagine que Tillie e Mildred tiveram uma discussão séria e que Tillie se mudou para o outro lado do país, enquanto os descendentes de Mildred, inclusive você, tenham permanecido no mesmo lugar.
Tillie e Mildred nunca mais se falaram. As duas mulheres tiveram filhas, por isso o mtDNA matrilinear delas foi transmitido. Mas, à medida que as gerações continuavam, as famílias das duas sabiam cada vez menos da existência uma da outra, até que uma linhagem não tivesse mais conhecimento da outra. Mas as duas linhagens estão prestes a ser reunidas de uma forma não intencional. Os pesquisadores colocaram anúncios nacionais em busca de voluntários para um estudo sobre as tendências atuais da população humana, usando o mtDNA para fazer o mapeamento. Por acaso, você e um primo distante do lado da família de Tillie decidiram ser voluntários.
DNA identification.
Chuck Kennedy/Getty Images 
O DNA mitocondrial é útil para identificar parentes. Ele é usado neste Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas em Rockville, Maryland, para a identificação dos corpos dos soldados.
Depois de coletarem sua amostra de DNA, os pesquisadores comparam o seu mtDNA com as seqüências dos outros voluntários. E acredite se quiser, eles descobrem que dois dos voluntários são primos. Através da comparação do seu mtDNA com o de seu primo, os geneticistas podem dizer há quanto tempo Tillie e Mildred se afastaram. Se eles examinassem apopulação local da área de seu primo e da sua, eles também poderiam dizer se foi a Tillie ou a Mildred que migrou, vendo qual população tem mais pessoas com o mesmo mtDNA presente na linhagem de sua família. Se mais pessoas apresentam o mesmo mtDNA, significa que a seqüência existe por mais tempo. Além disso, eles também poderiam concluir que como você e seu primo têm o mtDNA parecido, vocês têm uma ancestral em comum mais recente, a mulher que é a mãe de Tillie e de Mildred.
Como as mutações de mtDNA demoram para acontecer, seria muito difícil para esses geneticistas imaginários reconhecerem você e seu primo com precisão, mas quando essa técnica é usada depois de um período de dezenas ou centenas de milhares de anos, ela se torna muito mais viável.
Mas nem todo mundo acredita na teoria da Eva Mitocondrial. Leia a próxima seção para aprender sobre as críticas feitas ao estudo.

Os ataques à Eva

O mapeamento evolutivo por meio do uso do mtDNA é impreciso. Quando o estudo do mtDNA continuou depois do fim de 1970, os cientistas descobriram uma característica conhecida como heteroplasmia, que é a presença de mais de uma seqüência de mtDNA encontrada na mesma pessoa. Mesmo dentro de uma única pessoa, existem diferenças entre o mtDNA que tornam complicada a comparação entre uma pessoa ou um grupo.
O estudo de 1987, que apresentou o conceito da Eva Mitocondrial para o mundo, foi atacado depois da evidência de que a população "africana" da qual os pesquisadores coletaram as amostras era, na verdade, quase inteiramente formada por afro-americanos. Mas será que durante algumas centenas de anos, desde que os africanos foram levados à força para as Américas, o mtDNA dos afro-americanos sofreu mutações o bastante a ponto de inutilizar as amostras? Diante das críticas, Cann e seus colegas colheram amostras adicionais de africanos que viviam na África, mas encontraram praticamente os mesmos resultados.
Sudanese refugees.
Natalie Behring-Chisholm/Getty Images
Depois de serem criticados por coletar amostras de DNA de afro-americanos em vez da de africanos para o estudo, Cann e seus colegas visitaram pessoas que viviam na África para coletar a informação genética delas. Os resultados foram os mesmos.

Outro problema com o estudo sobre o mtDNA é a diferença nos níveis de mutação. Tente imaginar as coisas dessa maneira: se você observasse quanto tempo uma seqüência específica de mtDNA demora para desenvolver uma mudança, ou mutação, e concluísse que leva mil anos, então duas classes de mtDNA da mesma linhagem com duas mutações teriam se separado há cerca de 2 mil anos, certo? Foi dessa maneira que Cann e seus colegas concluíram que a Eva Mitocondrial viveu há cerca de 200 mil anos.
Os pesquisadores disseram que no estudo, eles presumiram que o mtDNA sofre mutação em níveis constantes. O problema é que a ciência não sabe ao certo o nível de mutação do mtDNA, isso se existir um nível que possa ser medido. Se você observar o nível de mutação de um grupo de organismos, como por exemplo de todas as pessoas vivas hoje, chamado de nível filogenético, você pode chegar à conclusão de que o mtDNA sofre mutações em um nível constante. Mas se você observar uma única linhagem familiar dentro desse grupo grande, chamado de nível genealógico, é mais provável que você encontre um nível de mutação completamente diferente.
Como o "relógio de mutação" usado por Cann e pelos outros autores foi questionado, eles aumentaram a época de existência da Eva para algo entre 500 e 50 mil anos atrás.
Mesmo depois de décadas da publicação do estudo sobre a Eva Mitocondrial, os resultados ainda são muito debatidos. Será que todos nós descendemos de uma ancestral em comum que viveu há 200 mil anos? Será que podemos conseguir essa informação precisamente por meio do mtDNA? Essas perguntas permanecem sem respostas e fazem parte do trabalho futuro dos geneticistas evolutivos. Mas o estudo de 1987 foi tão inovador que mudou a maneira de nos vermos como humanos. Ele mostrou que em algum lugar na história, todos nós somos parentes.

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