quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Biografia de Sir Richard Francis Burton

Indiana Jones, o maior aventureiro da sétima arte, não passaria de um escoteiro se comparado a Sir Richard Francis Burton. Esse explorador, espião e escritor britânico protagonizou algumas das maiores aventuras da História, numa época cheia de homens brilhantes e intrépidos como o explorador David Livingstone, o cientista Charles Darwin e o coronel Percy Harrison Fawcett, em quem o herói cinematográfico teria se inspirado.

Sir Richard Francis Burton
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Richard Burton foi uma mistura de aventureiro e erudito, que durante o século 19 atuou como explorador, espadachim, agente secreto do governo inglês, se infiltrou disfarçado em lugares impensáveis para cristãos, como santuários muçulmanos, aprendeu 29 idiomas e dialetos, fez importantes descobertas antropológicas e científicas e foi poeta, tradutor e escritor.

Entre suas contribuições mais lembradas estão a descoberta da nascente do rio Nilo, na África, as traduções de "As Mil e Uma Noites" e do "Kama Sutra", que publicou e distribuiu em segredo, e sua participação num complô para derrubar o xá da Pérsia. Durante a sua vida, o número de admiradores que conquistou foi proporcional ao número de inimigos que colecionou.    

Os palcos de suas aventuras foram a África, a Ásia e a América do Sul, com uma passagem pelo Brasil, que resultou numa inédita navegação pelo rio São Francisco até o mar e no acompanhamento dos combates da Guerra do Paraguai, ao lado do duque de Caxias.

Burton não se preocupava em ser um exemplo para as criancinhas e era viciado em drogas, como o ópio e o haxixe, e um alcoólatra inveterado. Seus comentários sobre os costumes dos povos que conhecia também não respeitavam a cartilha do politicamente correto, o que resultou em relatos antropológicos importantes sobre a cultura muçulmana e a indiana, principalmente, e em duras críticas aos jesuítas, entre outras. Seu gosto por bordéis e prostitutas também o acompanhou desde a adolescência e contribuiu, junto com seu gênio irascível e seu hábito de desafiar colegas para um duelo, para a sua expulsão da Universidade de Oxford. 

O mais incrível é que esse aventureiro libertário, espécie de anti-herói romântico, acabou casado com uma aristocrata puritana que se encarregou de destruir boa parte da obra original que Burton deixou ao morrer. A explicação para isso está na beleza de Isabel Arundell, sua esposa católica e moralista, que segundo os relatos da época era capaz de encantar e levar à loucura até o mais abnegado dos homens. Na próxima página, conheça como foram as primeiras aventuras dele.

O agente secreto

No século 19, o temor de perder a influência sobre a Pérsia (atual Irã) para a Rússia fez os ingleses tramarem contra o xá que estava no poder. Na aliança que fizeram com os ismaelistas (conhecidos como "os assassinos"), descendentes espirituais do quarto califa do Islamismo, primo e genro de Maomé, num complô para derrubar o xá, o então tenente Richard Burton teve um papel essencial. Apesar da antipatia que Burton nutria pelo príncipe-imã aliado dos ingleses, em 1844 ele exerceu sua influência sobre o imã para que ele recrutasse outros chefes tribais persas e liderasse uma revolta contra o xá. No período que agiu tramando contra a Pérsia, Burton disfarçou-se de comerciante, andarilho e religioso muçulmano para transitar por várias tribos islâmicas. Sua herança inglesa emergia discretamente num certo toque dândi que surgia em seus trajes muçulmanos. Mas a eficiência de seus disfarces e de como conseguiu passar-se por muçulmano pode ser medida pelas informações preciosas para os planos ingleses que ele conseguiu em bazares, povoados e junto a religiosos e na precisão dos levantamentos topográficos que fez. Mesmo em suas aventuras de espião, Burton não abandonou seu gosto por drogas e prostitutas. Ele também desafiou rígidos costumes locais, que puniam com a morte várias práticas, e teve amantes persas e indianas.

Richard Burton: as primeiras aventuras

Richard Francis Burton nasceu em 19 de março de 1821 em Torquay, Devonshire, na Inglaterra. Seu pai era um militar do exército britânico que teve de se aposentar cedo em função de problemas de saúde. Na ascendência dos Burton havia irlandeses, ingleses e possivelmente franceses, mas a aparência de Richard desde criancinha trazia traços ciganos. A asma de seu pai levou os Burton a morar na França e na ensolarada Itália, o que contribuiu para a incrível aptidão que Richard mostraria no domínio de idiomas e na expectativa de sua família dele ser uma criança-prodígio.
Origem do Rio Nilo no Lago Victória, na África
© iStockphoto.com /Lingbeek
Nascente do Rio Nilo no Lago Vitória, na África, uma das grandes descobertas de Richard Francis Burton
Mas, além das línguas, ele mostrou outra importante habilidade desde muito jovem. Apesar dos professores rigorosos e da exigência no estudo de disciplinas tradicionais e importantes para os jovens ingleses da época, como o latim, a dança e a música, Richard e seu irmão Edward tinham um interesse especial por armas. Foi nessa época que ele começou a manifestar seu caráter bélico, quando por exemplo quis matar um porteiro por ele simplesmente ter feito piadas sobre suas armas de brinquedo e nas constantes brigas com outros garotos ingleses e franceses. Essa faceta rude de Richard era compensada por um lado doce em sua natureza, que se manifestava principalmente na admiração que tinha pela mãe. Mas,o que predominou no fim da infância foi uma personalidade delinquente que resultava em pequenos furtos nas lojas, tiros em monumentos com a espingarda que roubara do pai e em obscenidades ditas para as moças.

Na adolescência, na Itália, além da esgrima, aprendida com um professor francês que tinha participado das Guerras Napleônicas, outros grandes interesses de Richard e seu irmão foram a prática de tiros com a pistola, as bebidas e as prostitutas. Com esse histórico, Richard foi enviado pelo pai para o Trinity College, na Universidade de Oxford, em 1840. Àquela altura, ele já era fluente em francês, latim, grego e em dialetos italianos e franceses. A vivência no exterior e as farras que pode desfrutar por lá, contrastando com o puritanismo da Inglaterra vitoriana, fazia Richard afirmar que a Inglaterra era o único lugar no mundo onde ele não se sentia em casa.   

Sua estadia em Oxford foi curta. Dois anos de serviços religiosos obrigatórios, monotonia, comida ruim e convivência com estudantes e professores medíocres, quando comparados aos seus talentos e conhecimentos, foram  preenchidos com muita indisciplina, provocações, visitas a acampamentos ciganos e um interesse por filosofia e misticismo, como a cabala e a astrologia. Em 1842, ele acabou expulso de Oxford e sem perder tempo, após aprender uma língua hindu, realizou seu sonho de infância, e que o pai não aceitava, de iniciar uma carreira militar. Partiu para Bombaim, na Índia, para lutar contra os afegãos  e foi designado para o 18.° Regimento de Infantaria da Companhia das Índias Orientais.    
Livro sobre a emocionante vida do explorador britânico Richard Burton
Reprodução
Livro sobre a emocionante vida do explorador britânico Richard Burton
Quando Burton partiu para a Índia estava em curso uma disputa entre Rússia e Inglaterra pelo controle dos territórios da Ásia Central e Ocidental, que incluíam as terras do antigo império Persa. Ao chegar lá ele começou a fazer anotações sobre aquele mundo oriental exótico e exuberante, que se tornariam importantes relatos etnológicos. Logo suas habilidades o fizeram um dos oficiais favoritos de Sir Charles James Napier, comandante das forças inglesas. Ele tornou-se um oficial da inteligência britânica e disfarçado de mercador muçulmano passou a espionar nos bazares. Assim como outros oficiais ingleses, ele também passou a ter amantes indianas - muçulmanas ou hindus - e provavelmente deixou por lá uma prole de mestiços.

Mas um de seus relatórios sobre um bordel homossexual frequentado por soldados ingleses e meninos indianos era tão explícito que foi desastroso para ele e seu comandante. Mandado de volta, Richard passou um tempo vivendo com a mãe e a irmã em Boulogne, na França, onde escreveu quatro livros sobre a Índia, entre eles um brilhante estudo etnológico chamado "Sindh e as Raças que Habitam o Vale dos Hindus", e conheceu a jovem católica Isabel Arundell, que viria a ser sua esposa. Nesse período ele também finalizou um mirabolante plano que tinha em mente havia anos e que se tornaria uma de suas grandes aventuras, como veremos na página a seguir.

A descoberta do Kama Sutra

Em plena Inglaterra vitoriana, onde estava em vigor o Ato de Publicações Obscenas, e quatro décadas após seus primeiros dias na Índia, Richard Burton publicou e distribuiu em segredo uma pequena tiragem - 250 exemplares - do livro do "Kama Sutra", uma coletânea de textos indianos sobre sexo. Em 1883, Burton começou a fazer o Ocidente descobrir o que os indianos já sabiam. Segundo a lenda, o touro sagrado do deus Shiva decidiu compartilhar com os homens os segredos da alcova entre seu dono e a esposa Parvati. O livro seria, segundo os historiadores, uma compilação de textos antigos sobre amor e sexo tanto para homens como para mulheres, o que inclui tratar de temas como sadomasoquismo, homossexualismo, sedução, descrição de posições sexuais, ritual de casamento, sexo grupal, fantasias sexuais e as relações entre prostitutas e clientes e vice-versa, entre outros assuntos picantes. Burton procurou mostrar com a divulgação do "Kama Sutra" que o sexo não deveria ser visto como uma obrigação para a procriação e sim como fonte de alegria e prazer. Entre as novidades trazidas pela publicação da obra estavam as revelações de que no Oriente religião e sexo não estão separados como no Ocidente e que as mulheres, assim como os homens, também têm orgasmos.   

Richard Burton: as grandes aventuras

Em 1853, o capitão Richard Francis Burton colocou em prática um plano que vinha desenvolvendo há muito tempo. Interessado em fazer uma grande exploração da Arábia, ele partiu do porto de Southampton, na Inglaterra, disfarçado de príncipe persa rumo ao Cairo, no Egito. No caminho treinou os hábitos e jeitos árabes e leu o Alcorão. Ao chegar, mudou seu disfarce e caracterizou-se como um afegão muçulmano. De lá, passou por Suez e foi até a cidade sagrada de Medina, onde Maomé mais de mil anos antes desenvolveu os pilares do Islã. Burton viajou através de uma rota infestada de bandidos para Meca e conseguiu entrar num dos lugares mais sagrados para o Islamismo, o santuário de Caaba, para onde anualmente milhões de muçulmanos peregrinam para realizar suas orações.
islamismo
© istockphoto.com /Afby71
Santuário islâmico de Caaba, em Meca, local em que Richard Burton entrou disfarçado de muçulmano
A viagem foi financiada pela Royal Geographic Society, de Londres, e Burton realizou uma das melhores investigações etnográficas até então sobre o mundo árabe. Sua erudição e sofisticação resultaram em comentários valiosos sobre o cotidiano e os costumes dos muçulmanos, especialmente durante a peregrinação anual rumo a Meca. Apesar de ter cumprido seu objetivo, Burton não estava satisfeito. Em vez de retornar a Londres, partiu em direção a outro local proibido a não-muçulmanos: a cidade de Harar, localizada a quase dois mil metros de altitude na Etiópia. Ele tornou-se o primeiro europeu a entrar na cidade e sobreviver para contar o que viu. 

Foi durante essa viagem que ele teve a ideia de uma outra grandiosa aventura: descobrir a nascente do rio Nilo. A primeira tentativa em 1855 fracassou quando sua expedição foi atacada por guerreiros africanos na Somália e ele foi seriamente ferido por uma lança que atravessou seu maxilar. Após se recuperar em Londres, ele foi para a Crimeia como voluntário lutar na guerra contra a Rússia. Com o fim da luta, ele retomou sua busca pela fonte do Nilo.

A expedição que liderou partiu de Zanzibar em 1857 e sofreu todos os infortúnios que a natureza africana podia infringir. Ao alcançar o lago Tanganica em 1858, Burton estava tão enfraquecido pela malária que mal podia caminhar. Quase desistindo da busca, ele foi convencido pelo seu companheiro na aventura africana, o explorador John Hanning Speke, a seguir para o nordeste antes de retornarem para Londres. Nessa rota, eles finalmente alcançaram a nascente do rio Nilo no maior lago africano, que recebeu o nome de Vitória em homenagem à rainha inglesa. Só que os méritos da descoberta ficaram com Speke que voltou antes para a Inglaterra.

Em 1860, Burton partiu para os Estados Unidos e passou um tempo vivendo em Salt Lake City, a "cidade dos mórmons", e no seu retorno a Inglaterra, em janeiro do ano seguinte, casou-se secretamente com a aristocrata Isabel Arundell. Após o casamento, Burton iniciou uma carreira diplomática que não o impediu de fazer várias viagens curtas de exploração, principalmente na África Ocidental. Essas explorações o levaram a descrever vários costumes e rituais tribais da região, incluindo canibalismo e práticas sexuais bizarras, que muito contribuíram para os estudos antropológicos modernos.

Entre 1865 e 1869, ele serviu como cônsul britânico no Brasil. Foi quando começou sua tradução de "Os Lusíadas", do poeta português Luis de Camões, por quem tinha uma grande admiração, e também dos contos folclóricos indianos "Vikram e o Vampiro". Nem essas atividades, nem o abuso do álcool ajudaram a diminuir a aversão que ele sentia pela vida que levava no Brasil. Sua esposa ficou encarregada de usar os bons contatos familiares que tinha para lhe conseguir um posto no Oriente Médio. Burton foi nomeado então cônsul em Damasco, na Síria. Sua paixão pela cultura árabe, no entanto, não foi suficiente para evitar que as indiscrições de sua esposa católica resultassem em uma intriga dos muçulmanos que levaram a sua demissão em 1871. 

No ano seguinte, ele foi nomeado diplomata na cidade italiana de Trieste, que naquela época fazia parte do Império Austro-Húngaro. Lá revelou-se um excepcional tradutor e publicou várias obras que mostravam sua paixão pela arqueologia e antropologia, além de narrarem suas grandes aventuras. Foi em sua temporada em Trieste que ele traduziu e publicou sem cortes uma edição com 16 volumes de "As Mil e Uma Noites", que foi um marco pela sua fidelidade ao original e pela força literária do texto em inglês. Em fevereiro de 1886, os serviços de Burton a Sua Real Majestade foram reconhecidos e ele foi condecorado como Cavaleiro de São Miguel e São Jorge pela rainha Vitória.

Sir Richard Francis Burton morreu em 20 de outubro de 1890 em Trieste aos 69 anos de idade. Após sua morte, sua esposa temendo pela imagem do marido num mundo regido pela moral vitoriana queimou quase todos os diários e anotações que Burton fez durante 40 anos, um ato que representou uma tragédia para a antropologia, para os estudos históricos e para todos aqueles que seriam inspirados pelos detalhes das aventuras de Burton.

Aventuras brasileiras

Richard Francis Burton já era uma celebridade quando chegou com sua bela esposa Isabel ao Brasil em 1865 para servir como cônsul britânico na cidade de Santos. Burton não gostou do que viu na cidade litorânea e logo se mudou para São Paulo. Enquanto sua esposa tentava converter os escravos em católicos e ficava amiga da Marquesa de Santos, que havia sido amante do imperador D. Pedro I, Burton cuidava de redigir relatórios consulares, tarefa bem entediante para ele, traduzir algumas obras para o inglês, como "Os Lusíadas", de Camões, e aprender as línguas indígenas brasileiras, como o tupi-guarani. Mas tudo aquilo era muito monótono para um dos maiores aventureiros de todos os tempos. Ele começou então a visitar o interior do país interessado em encontrar riquezas, como ouro e diamantes, ou caçando lendárias criaturas. Nessas aventuras acabou, como sempre acontecia com ele, fazendo descobertas e escavações arqueológicas em ruínas de tribos indígenas e fortes portugueses. Numa de suas explorações em busca de ouro, acabou navegando por dois mil quilômetros pelo rio São Francisco até o mar, algo que os nativos garantiam ser impossível de se fazer. A aventura durou um ano e ele registrou tudo o que encontrou pelo caminho. Antes de deixar o país, Burton foi ver de perto a Guerra que o Brasil, Argentina e Uruguai travavam contra o Paraguai, país que ele considerou "uma Esparta pele-vermelha", em função do heroísmo que seus soldados demonstravam. Apesar disso, o explorador britânico achava que os paraguaios formavam uma "uma nacionalidade obscura e paleolítica". Para ele, a culpa pelo atraso daquele povo eram os jesuítas, que tinham criado um "despotismo religioso debilitante e embrutecedor". Burton passou um mês no campo de batalha ao lado do duque de Caxias, antes de seguir para Montevidéu, Buenos Aires e Lima.

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